sexta-feira, 16 de março de 2012

O Herói

Antônio Roberto Soares
Psicólogo
Em nosso relacionamento com o mundo, podemos nos colocar numa outra postura, a postura de Herói. Muitas vezes, num esforço para sair da postura de Vítima, caímos no extremo oposto. Somos vitimas quando nos sentimos determinados cem por cento pela realidade, e bancamos o herói quando sentimos que a realidade é cem por cento determinada por nós. O “herói” é o dominador, o controlador, aquele que se julga senhor e dono de outras pessoas, é aquele eu cria a visão da realidade como resultado de sua própria vontade, é aquele que acha que só existem duas alternativas no relacionamento: ou ser dominado ou ser dominador, ou ser escravo ou senhor, ser menos ou ser mais, ser perfeito ou ser a pior coisa que existe. É a postura do oito ou oitenta. O herói extrai alegria da tristeza do outro, ele se sente bom se provar que o outro é mau. O herói, deste modo, peca por excesso, sente-se o único responsável pelo que está ocorrendo à sua volta e, por isso, assume mais do que pode cumprir. Ele se insurge contra a realidade vai além do que lhe é possível. Se na postura de vitima nos negamos, na postura de herói nós negamos o outro, sentimo-nos o único sujeito da relação humana e consideramos as outras pessoas como objetos.
O herói se coloca em nível superior ao das outras pessoas, escondendo um profundo sentimento de inferioridade. É o todo poderoso, o que sabe tudo, o que sempre tem razão, o imbatível, o melhor. É aquele que perdeu a simplicidade de estar no mundo, é o que não sabe e não sabe que não sabe; daí, a sua dificuldade em aprender. Supõe saber tudo e perde com isso a capacidade de perguntar, a capacidade espontânea de fazer perguntas, de perguntar o que não sabe. Em contrapartida, seu comportamento é sempre o de ensinar, de julga, de analisar e de orientar os outros. É o dono da verdade. Por isso, nunca diz: “Eu não sei”. Nunca pede ajuda. Ele se julga como padrão dos outros e se relaciona com o mundo através de uma avassaladora programação de dogmas, de verdades feitas, porque as pessoas serão boas, honestas, verdadeiras, inteligentes, se coincidirem com o seu modo de pensar, de sentir e de agir.
Internamente o herói raciocina que as pessoas devem ser feitas à sua imagem e semelhança, as pessoas devem ser da maneira que ele quer que elas sejam, os pensamentos das outras pessoas terão de ser os seus próprios pensamentos, o comportamento dos outros tem de ser como ele acha que deve ser. O herói é semelhante a Proskrusts na lenda antiga, que punha todas as pessoas numa cama do mesmo tamanho. Se as pessoas fossem compridas, ele cortava-lhes as pernas, se fossem muito curas, esticava-as até que coubessem na cama.
Há pessoas que querem enquadrar os outros no seu moralismo, nos seus dogmas, nas suas verdades, e isto é a pior forma de tortura. Por isso, o herói é aquele que sofre, esconde ao máximo seu sofrimento e gosta de fazer os outros sofrerem. As suas críticas são tentativas de enquadrar alguém nos seus padrões. O herói é a pessoa que não suporta as diferenças, ignorando que aquilo que faz o mundo ser mundo é a união das diferenças, ignorado também que só podemos amar outra pessoa por suas diferenças em relação a nós, porque naquilo em que ela é igual estamos amando não a ela, mas a nós mesmos.
Só podemos crescer a partir das diferenças. A função da diferença é o crescimento. Só podemos aprender com o outro naquilo que ele pensa diferentemente de nós, porque naquilo em que ele pensa igualmente não há nenhuma descoberta, mas apenas confirmação do que já sabíamos. O herói, na sua visão de onipotência evita ver e aceitar os limites do mundo. Para ele não existem limitações de tempo, de espaço, de cor, normas, saúde e condições. Há nele a crença na possibilidade de ser super: super-homem, super-profissional, supercapaz, superpai, supermãe, super-inteligente. É o Delírio da Onipotência, é a interiorização de um ideal de vida baseado na possibilidade de ser um super-herói, é a crença de que podemos ser mais do que nós somos. E sempre que bancamos o herói em nosso encontro com o mundo, depois nos sentimos vítimas. A toda atenção excessiva corresponde depois uma depressão, a todo excesso segue-se naturalmente um recesso. Os nossos malogros e nossas frustrações advêm de termos procurado ser e realizar mais do que éramos humanamente capazes.
Essa lei é a mesma lei física de Newton: “A toda ação corresponde uma reação igual e contrária”. Se não levarmos em conta os limites das situações e agirmos como se elas não existissem, teremos em nossa vida, a resposta deste exagero em forma de sofrimento, seja ele físico, psicológico ou social. Quando nos sentimos humilhados e ofendidos, melhor será nos perguntarmos onde, como, e quando quisemos ser mais do que somos, perguntar a quem quisemos dominar e controlar, e não conseguimos, pois só estamos sofrendo as consequências de querermos ser mais do que a própria realidade.
O herói, na sua tentativa de manipular os outros, torna-se obcecado por controle, por poder, e usa todo tipo de truques. Assim, ele banca o autoritário, o durão, o frio, o machão, o estúpido, o teimoso, o corajoso, o desafiador, aquele que quebra, mas não verga. Herói é o que esconde o medo sob a capa da coragem e depois de frustrada a sua tentativa de controlar os acontecimentos, vai bancar o desamparado, o desprotegido, o humilhado, o ofendido, o magoado e o injustiçado. E é assim que perdemos a nossa liberdade individual. O mais interessante a respeito de uma pessoa obcecada pelo desejo de controlar o semelhante, é que ela sempre acaba por ser controlada, ela se prende na própria teia, tecida para prender os outros.
Quando aprisionamos alguém, nós também nos aprisionamos. O policial que monta guarda à porta da cela para que o marginal não fuja, está tão preso quanto ele. O herói é como o diamante, fere todo mundo e não quer ser ferido por ninguém. É o durão inflexível e, em nome da personalidade, ele quer ser um só, igual em todos os lugares com todas as pessoas e com todas as circunstâncias. As pessoas e o mundo que se modifiquem para se adequarem a ele. Ele é o centro do universo, ele é um ponto fixo em torno do qual devem girar todas as outras pessoas. E nessa fantasia de ser permanente, de ocupar uma posição fixa na vida, ele se agarra a ela com unhas e dentes. Com o imbatível propósito de não arredar pé dali, vai tendendo pouco a pouco a se confundir com os seus papéis na vida, as suas categorias, os seus adjetivos. Ele já não é ele, é apenas o chefe, o PI, o ocupante de um cargo, o rico, o inteligente, o famoso, o amado, o sensato. E assim, vai abdicando do seu universo interior, da sua humanidade, da sua vida verdadeira, da sua origem simples e alegre, abdicando do seu Ser, que é parte de um universo. Passa mecanicamente a ser uma peça sofredora, escrava e escravizante.
Setenta por cento do nosso organismo é água e isto deveria nos mostrar o quanto o organismo é flexível, mutável, adaptável às situações. A autoridade não vem das pessoas, mas dos fatos, da realidade, da situação. Ter personalidade humana é ser capaz de fazer uma síntese com o ambiente que nos cerca, não ser mais ou menos adaptado às circunstâncias, mas estar com elas em harmonia, em ligação, em reciprocidade e integração.
O herói se revolta contra a realidade, ele está sempre com desequilíbrio com relação ao mundo. Na postura de herói, somos resistentes às mudanças, às mutações do mundo, porque no herói existe a crença e o desejo de ser imutável. E a principal causa dessa reação às mudanças se encontra no fato de que qualquer alteração significativa nos faz lembrar que tudo evolui, que esta vida passa e que um dia vamos morrer. Para não olharmos de frente o inevitável, aprendemos a fingir que controlamos a nossa existência e a dos outros e vamos creditando falsamente que é possível permanecer sempre o mesmo nu mundo cuja característica básica é a mutação. E neste afã de impedir que a vida flua como um rio, pretendendo controlar o futuro, o desconhecido, o que ainda não aconteceu, transformamos nossa vida numa competição, numa luta extenuante contra o tempo e então agimos como um cavalo de corrida.
Isto aparece na forma de Pressa e de Preocupação. A pressa e a preocupação provêm do fato de fazermos nossa felicidade depender sempre da expectativa de alguma coisa no futuro. Viver sempre em função do futuro, do que vem, deixa-nos sentir sem contato com a fonte ou o centro da vida, porque o amanhã nada significa, a não ser que esteja em completa ligação com a realidade do presente que se vive. Nós nos preocupamos porque nos sentimos inseguros e desejamos segurança, e porque ainda não compreendemos que não existe segurança na vida humana. Ponderemos como é contraditório desejarmos ser estáveis e seguros num universo cuja própria natureza se caracteriza pela fluidez e pela instantaneidade. Não há absolutos para algo tão relativo como a vida. Os nossos desejos voltados para o futuro são empecilhos que nos dificultam assumir agora a responsabilidade por eles, e assim preocupamo-nos para não nos ocuparmos com o que é possível fazer agora. A pressa e a preocupação são um desejo de ter a certeza de um futuro brilhante e tranqüilo. O poder de usufruir as coisas agradáveis que nos estão acontecendo e nos é negado pela preocupação constate. Nossa mente está preocupada com algo que ainda não está presente. O dom da previsão de pensar sobre o futuro constitui a principal realização do cérebro humano. Entretanto, o modo pelo qual geralmente usamos este poder pode destruir todas as suas vantagens, pois é de pequena utilidade para nós prever possíveis acontecimentos no futuro, se isto nos tortura, se nos torna incapazes de viver plenamente o presente.
Somos heróis quando estamos sempre nos preparando para viver, ao invés de viver. Se para termos um presente agradável, precisamos a certeza de um futuro feliz, podemos desistir da felicidade. Tal certeza é impossível de se obter. Sempre haverá o desconhecido, jamais conseguiremos controlar o imprevisto. Não é que não tenhamos motivo para as nossas preocupações – apenas elas são inúteis. A vida só se vive de improviso, é sempre de repente, no rascunho, não se pode passar a limpo. Não apressemos o rio, ele corre sozinho.
Bem-aventurados aqueles que conseguem deixar a vida fluir e harmonizar-se com ela, sejam quais forem as circunstâncias. O nosso caminho de felicidade é o caminho da Adaptação. Não confundamos adaptação com acomodação. A adaptação é uma mudança harmônica dentro da realidade, levando em conta as nossas possibilidades e as possibilidades dos outros. Nós somos nós e o mundo é o mundo e nós somos um com o mundo. Fazemos parte de um universo, fazemos parte de uma sociedade, fazemos parte de uma família, fazemos parte de uma empresa e só haverá dor psicológica quando, ao invés de aceitarmos o nosso papel de parte, nós quisermos ser o Todo.
Sábio é aquele que desistiu de enquadrar as pessoas, o mundo e o futuro nas suas concepções. Sábio é aquele que, através de uma harmonia pessoal, consegue sentir o seguinte: “Faço parte e quero cada vez mais integrar-me e adaptar-me à vida que canta e cai, à vida que sofre e festeja em volta de mim”. Sábio é aquele que desistiu de ser o universo e resolveu apenas viver com o universo.




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